Cultura digital

Ilustração: Shutterstock


Nos dias de hoje, muitos falam em atingir resultados exponenciais, porém, continuam gerenciando seus negócios com um pensamento linear e mecanicista, próprio da cultura do século xx. Isso é o mesmo que disputar uma corrida de fórmula 1 usando muitos cavalos em uma carroça e não um motor. Podem acabar sendo atropelados e perdendo não só a corrida, mas também os cavalos.

De acordo com a definição da Academia Brasileira de Letras, “cultura” são valores, costumes e estética de um certo período histórico. Embora essa palavra tenha outros significados etnológicos, até mesmo frequentemente confundindo-se com educação, em seu contexto mais antropológico, ela reflete a moral, costumes e crenças da sociedade em um determinado recorte do tempo e espaço. Dessa forma, sabemos que a cultura não pode ser considerada como algo fixo ou imutável, ao contrário, ela se move à medida que a sociedade se modifica.

Assim, qualquer definição do tipo mais avançada ou atrasada é equivocada, pois ela jamais poderá ser assim considerada, uma vez que o seu referencial também está sempre em movimento. Baseados nisso, escolhemos nossos parceiros, criamos filhos, educamos nossos alunos, desenvolvemos novas formas de expressão artística, convivemos em sociedade dentro e fora de limites geográficos.

O mundo dos negócios não pode ficar alheio à cultura, sendo ao mesmo tempo agente e paciente dessa nova forma de ver o mundo. Afinal de contas, são as pessoas que criam as tecnologias e os processos, produzem os produtos, impulsionam os resultados, encantam clientes, que por sua vez, também são pessoas sujeitas aos mesmos padrões. Dessa maneira, gostaria de elencar aqui algumas características que, a meu ver, estão definindo a cultura digital do nosso tempo ou, parafraseando o escritor israelense Yuwal Harari, criando novas crenças – a nossa nova “realidade intersubjetiva”.

São os chamados “valores” que motivam nossas ações. E quais seriam eles?

Senso de propósito ao invés de emprego. Reconhecimento, além de dinheiro. Experiência vivida mais do que posse. Somente essas três características já seriam suficientes para justificar a grande mudança no mercado de trabalho. Com pessoas trocando aquele “emprego formal para a vida toda” por oportunidades de se engajarem em projetos onde exista total compartilhamento de propósitos. Ou a grande mudança que está ocorrendo no mercado automobilístico, em que um número cada vez maior de pessoas rejeita a posse do carro em favor do compartilhamento do transporte de massa, ou mesmo no mercado imobiliário que já começa a oferecer aos seus clientes a possibilidade de pagar por uso ao invés de pagar por posse.

E o que falar do maior de todos os motivadores do ser humano, o dinheiro? Certamente, a moeda tem sido um meio muito eficiente de troca em um grupo superior a três pessoas; desde que abandonamos o escambo, entretanto, sua concentração cada vez maior nas mãos de poucas pessoas influi no aparecimento de novas formas de reconhecimento, e até mesmo as criptomoedas, regidas pela tecnologia Blockchain, surgem com o apelo da transparência e descentralização.

Outras características muito importantes que eu citaria são o respeito e o reconhecimento aos direitos fundamentais do indivíduo de crer no que quiser, amar quem desejar e decidir por si mesmo a forma como quer viver. Isso se vê refletido na preocupação de empresas líderes de incluírem toda a diversidade humana em seu grupo de colaboradores, várias cores, pesos, capacidades físicas, gêneros e tamanhos, de forma que sua representação reflita o maior número possível de pessoas/clientes existentes na sociedade. Isso me lembra um provérbio bíblico, atribuído ao Rei Salomão, “Na multidão de conselhos (diversidade), há sabedoria”.

Outro fator que gostaria de lembrar, é o próprio conceito de espaço e tempo. Por muitos anos, aprendemos que um corpo não poderia estar em dois locais ao mesmo tempo, ou que dois corpos não poderiam ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo. Será? Quando participamos das muitas e cotidianas videoconferências, reuniões com pessoas de várias partes do mundo, ao mesmo tempo em que continuamos acessando nossos Smartphones, respondendo e-mails, verificando as últimas notícias ou enviando e recebendo fotos e notícias dos nossos grupos de família ou amigos no Whatsapp, estamos no “multi task space” compartilhando tudo ao mesmo tempo, o agora. Como já previa o professor do Babson College, Tom Davenport, “a economia da atenção será a principal moeda da economia do século XXI”.

E o conceito de instantaneidade? Não podemos esperar por nada mais, quer seja o transporte, a chegada do produto, o amadurecimento de uma ideia. A necessidade premente de que tudo aconteça ao mesmo tempo influencia a forma de desenvolver produtos e serviços, por meio de metodologias ágeis que primem pela entrega deixando o aperfeiçoamento para o processo. Todos os que, como eu, tiveram a oportunidade de trabalhar sob a cultura anterior, devem se lembrar pelo menos de um daqueles projetos longos e intermináveis, que no final acabavam sendo cancelados por inviabilidade técnica ou mercadológica, mesmo após terem consumido tempo e recursos das companhias. Isso tudo acabava sendo ofuscado por outros projetos mais bem-sucedidos, com melhores margens que cobriam essa ineficiência.

E por falar nisso, nosso conceito digital de eficácia supera em muito o da eficiência do passado. Não nos serve mais fazer a coisa certa (desculpe, Spike Lee). Logo, temos que fazer certo a coisa certa, pelo preço certo, processo certo, para o mercado certo, com a margem certa. Os algoritmos e a nova ciência dos dados nos deixam pouca margem para erro. E eles são cada vez mais fatais, vide a redução extrema no ciclo de vida de produtos e a prosperidade e mortalidade de muitas empresas e serviços, ultimamente.

Tais dados desafiam todos os olhares, percepções, valores e moral da cultura analógica, a qual nossa sociedade está se afastando cada vez mais. Um dos efeitos colaterais pode ser o caráter conflitivo que vemos nos dias de hoje, uma vez que as pessoas e as tribos às quais pertencem, brigam muito mais para que seus pontos de vista sejam respeitados, tornando-se menos tolerantes a abrirem mão dos mesmos em prol de um “bem comum”. Na melhor das hipóteses, vamos dizer que o consenso ficou mais caro e demanda muito mais trabalho para ser encontrado.

Enfim, procurei listar alguns valores da nova cultura digital, que não podem ser considerados em si, bons ou maus, nem avançados ou atrasados, apenas reflexos de uma sociedade que aceleradamente muda o seu olhar e suas percepções sobre todas as coisas. Nos dias de hoje, muitos falam em atingir resultados exponenciais, porém, continuam gerenciando seus negócios com um pensamento linear e mecanicista, próprios da cultura do século XX. Isso é o mesmo que disputar uma corrida de Fórmula 1 usando muitos cavalos em uma carroça e não um motor. Podem acabar sendo atropelados e perdendo não só a corrida, mas também os cavalos.

Foto: Divulgação

Esse artigo foi escrito por Samuel Felicio. Samuel é consultor e especialista em Transformação Digital.

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