A Proteção Contra Arco Elétrico no Brasil: Da Exigência Regulatória aos Desafios de Implementação Pós-NBR 17227

Por Luiz Henrique Zaparoli*

Resumo

Este artigo apresenta um panorama da gestão de risco contra arco elétrico no Brasil. Inicia-se com o papel da Norma Regulamentadora Nº 10 (NR10) de 2004 como catalisador para a adoção de vestimentas de proteção térmica pelas empresas do setor elétrico e industrial. Em seguida, explora-se a lacuna metodológica que levou a práticas de especificação de EPI desvinculadas de estudos de energia incidente, resultando em acidentes. Detalha-se a ABNT NBR 17227:2025 como o marco normativo que estrutura o gerenciamento e controle de risco. Por fim, o artigo discute os desafios subsequentes, incluindo a necessidade de alinhamento regulatório da NR10, a garantia da qualidade técnica dos estudos de energia incidente e o fomento à produção de conhecimento e ferramentas nacionais.

1. Introdução: O Marco Regulatório da NR10

No contexto brasileiro, a revisão da NR10 em 2004, especificamente através de seu item 10.2.9.2, representou um ponto de inflexão na proteção dos trabalhadores ao demandar que as vestimentas de trabalho fossem adequadas quanto ao critério de inflamabilidade, visando “proteger contra os efeitos térmicos dos arcos voltaicos.

A interpretação oficial do Ministério do Trabalho e Emprego, em sua versão comentada da norma, clarificou que o requisito de inflamabilidade visava “proteger contra os efeitos térmicos dos arcos elétricos, que podem provocar queimadura nos trabalhadores e ignição das roupas”. Esta exigência transformou a utilização de vestimentas de proteção térmica, antes incomum, em uma condição indispensável para a execução de trabalhos em instalações elétricas energizadas.

2. A Lacuna Técnica: Seleção de EPI Desvinculada da dos Estudos de Energia Incidente

Apesar do avanço regulatório, a implementação da medida ocorreu, em grande parte, de forma empírica. A prática comum do mercado consistiu na adoção massiva de vestimentas genericamente classificadas como “Categoria de Risco 2” (conforme a norma NFPA 70E), sem a realização de um estudo prévio para determinar a energia incidente (Ei) específica de cada ponto da instalação nas distâncias de trabalho previstas para cada tarefa.

Esta abordagem criou um perigoso paradoxo: a proteção era selecionada sem o conhecimento quantitativo do risco. Em analogia à proteção contra choque elétrico, seria o equivalente a um eletricista utilizar uma luva isolante classe 0 (1.000 V) para intervir em um circuito de 13,8 kV, unicamente por ser uma “luva isolante”. Tal cenário, inaceitável para o risco de choque, foi por muito tempo a prática vigente para o risco de arco elétrico. Consequentemente, registraram-se acidentes nos quais trabalhadores, mesmo utilizando o EPI, sofreram queimaduras graves, pois a energia incidente do evento superou o nível de proteção da vestimenta, ou seja, seu Arc Thermal Performance Value (ATPV).

Neste contexto, ficou evidente, a partir da literatura técnica internacional e da análise de acidentes, a necessidade imperativa de realizar estudos de energia incidente para todas as instalações elétricas, estabelecendo a correlação direta entre o risco calculado e a especificação do EPI.

3. A Consolidação Metodológica: ABNT NBR 17227:2025

A publicação da ABNT NBR 17227: Arco elétrico — Gerenciamento de risco de energia incidente, precauções e métodos de cálculo em maio de 2025 preencheu a lacuna normativa existente. Esta norma representa um marco para a segurança do setor, instituindo um guia completo para o gerenciamento do risco.

Entre os principais avanços e componentes da norma, destacam-se:

· Análise conforme a IEEE Std 1584: Para tensões AC entre 0,208 a 15 kV em corrente alternada a NBR 17227 detalha o método de cálculo consagrado pela IEEE Std 1584, “Guide for Performing Arc-Flash Hazard Calculations”. Ela orienta desde as etapas de levantamento de dados em campo, modelagem do sistema elétrico, definição de premissas de cálculo até a aplicação das equações para determinação da energia incidente.

· Escopo Abrangente: Define a obrigatoriedade de cálculo e indica metodologias para sistemas com tensão superior a 15 kV em corrente alternada e sistemas de corrente contínua.

· Critério Técnico para Seleção de EPI: O capítulo “Equipamento de proteção individual – EPI” descreve todos os requisitos necessários para as vestimentas de proteção térmica e estabelece o critério fundamental para a proteção do trabalhador: a capacidade de proteção da vestimenta (comumente descrito em ATPV) deve ser superior à energia incidente calculada (Ei) no equipamento em questão na distância de trabalho considerada. Isso substitui a seleção por “categoria” por uma seleção baseada em desempenho e engenharia.

· Sinalização de Risco: normatiza o conteúdo das placas/etiquetas de segurança a serem afixadas nos equipamentos. Estas devem conter informações essenciais como o valor da energia incidente, a distância de trabalho, a fronteira de arco elétrico (arc flash boundary) e os EPIs necessários. Podem ser consideradas e inseridas nas placas mais de uma distância de trabalho para atividades diferentes em um mesmo equipamento

· Controle do nível de Energia Incidente: Nos indica ações que podem e devem ser implementadas “trazer” para valores aceitáveis cálculos de energia incidente com resultados elevados onde não é possível realizar a proteção do trabalhador, ou seja, onde não se pode obedecer a relação de proteção da vestimenta maior que a energia incidente calculada. São apresentadas soluções como a redução do tempo de atuação das proteções, a utilização de dispositivos de detecção de arco por luz, modificação do procedimento de trabalho com consequente mudança da distância do trabalhador em relação a fonte entre outras, visando reduzir a energia incidente a níveis onde a proteção do trabalhador seja viável e segura.

· Gestão do Risco Baseada em Tarefas: No capítulo “Recomendações para operação e manutenção”, são tratados itens como a definição das distâncias de trabalho por atividade a serem executadas e consequente especificação de vestimentas por tarefa, uma evolução muito significativa na qualidade dos estudos, que apesar de implícita nas metodologias de cálculo não havia sido anteriormente indicada explicitamente como uma opção.

· Definição de Responsabilidades e Competências: O capítulo “Responsabilidade sobre a gestão dos estudos de energia incidente” aborda a qualificação do profissional responsável e estabelece os critérios que demandam a revisão dos estudos, garantindo a perenidade e a confiabilidade da análise.

4. Desafios Futuros e Melhores Práticas de Implementação

A publicação da NBR 17227 é um passo fundamental, mas a evolução do tema depende de ações subsequentes, tanto regulatórias quanto técnicas.

4.1. Harmonização Regulatória

É de suma importância que a próxima revisão da Norma Regulamentadora NR10 incorpore formalmente a exigência da realização de estudos de energia incidente. Essa medida deixará explícito que os estudos e energia incidente são uma obrigação legal inequívoca, eliminando ambiguidades e impulsionando sua adoção em larga escala.

4.2. Critérios para a Qualidade dos Estudos de Energia Incidente

Para além da obrigatoriedade, é imprescindível zelar pela qualidade técnica dos estudos. Conforme diretrizes da NBR 17227, alguns pontos críticos de atenção incluem:

1. Vedação a Abordagens Genéricas: Os cálculos devem ser individualizados por equipamento. Práticas como amostragem ou definição de “painéis típicos” são tecnicamente falhas, pois não consideram as variações de corrente de curto-circuito, ajustes de proteção, distâncias de trabalho entre outros fatores

2. Escopo Abrangente da Análise: Em subestações, o estudo deve contemplar todos os pontos de risco, incluindo os quadros de serviços auxiliares de baixa e média tensão e os sistemas de corrente contínua.

3. Cálculo Preciso do Tempo de Eliminação da Falha: O tempo de atuação das proteções deve ser determinado com base na corrente de curto circuito ou de arco (Iarc) calculada a depender da metodologia. No entanto é imprescindível que esta seja realizado de forma individual sem adoção de tempos de atuação padrão.

4. Determinação Criteriosa das Distâncias de Trabalho: A padronização excessiva das distâncias de trabalho pode levar ao superdimensionamento (custo e desconforto) ou, mais gravemente, ao subdimensionamento (risco) dos EPIs.

5. Sinalização correta: Deve-se gerar placas/etiquetas de identificação individualizadas com resultados dos estudos incluídas todas as informações necessárias para que o trabalhador possa ter subsidio para manter-se protegido

5. Fomento à Produção Técnica Nacional

A consolidação do tema no país estimula o desenvolvimento de literatura e soluções tecnológicas nacionais. Exemplos notórios dessa evolução são o livro “Arco Elétrico e Energia Incidente”, de autoria de Claudio Mardegan, Filipe Rezende e Marcio Bottaro, e o software “Pro Arco”, uma ferramenta dedicada aos cálculos de energia incidente, ambos representando a capacidade técnica nacional de gerar conhecimento e ferramentas de alta qualidade.

6. Conclusão

A jornada da segurança contra arco elétrico no Brasil demonstra uma clara trajetória de amadurecimento, partindo de uma exigência regulatória geral (NR10) para uma especificação técnica detalhada e robusta (ABNT NBR 17227). O desafio atual transcende a normatização e se concentra na implementação qualificada: garantir que os estudos sejam realizados com rigor técnico, que a regulamentação se modernize para refleti-los e que o ecossistema nacional de especialistas e soluções continue a se fortalecer. A integração desses fatores será decisiva para a efetiva proteção dos trabalhadores do setor elétrico e industrial.

*Luiz Henrique Zaparoli
Engenheiro eletricista pela Universidade Federal de Itajubá e engenheiro de Segurança pela Universidade Estadual de de Minas Gerais. Atua desde 2004 como engenheiro de manutenção/operação e engenheiro de segurança na Eletrobras. Atua também como gestor de Engenharia na Estudio de Software no desenvolvimento de aplicações computacionais de segurança no trabalho. É membro do comitê de segurança em eletricidade da ABNT tendo participado da construção do texto da NBR17227

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