O avanço das redes inteligentes
Especialista analisa momento das smart grids no Brasil e avalia questões como tendências e perspectivas para esse conjunto de tecnologias.
Maior mercado da América do Sul, o Brasil ocupa posição de liderança no processo de implantação das tecnologias que compõem as Smart Grids – ou redes inteligentes de energia.
Houve boa evolução em algumas áreas e nem tanto em outras, mas o fato é que há vários projetos em andamento, como na parte de medição remota, que é baseada na utilização de medidores inteligentes (eletrônicos), em substituição aos tradicionais.
Nesta entrevista, Cyro Boccuzzi, CEO da empresa ECOEE e presidente do Fórum Latino-americano de Smart Grid fala sobre algumas tendências da área, como cibersegurança, transformação digital e o advento da geração distribuída, e analisa as perspectivas futuras para o Brasil nessa área da energia.
POSSÍVEL CITAR ALGUNS EXEMPLOS DE PROJETOS DE SMART GRID QUE ESTÃO EM ANDAMENTO NO PAÍS?
Cyro: Primeiro é preciso conceituar Smart Grid. Trata-se de um conjunto de tecnologias que envolve medição inteligente, automação, sistemas avançados de inteligência e gerenciamento de sistemas, centros de controle, toda a parte de TI e Telecom que dão suporte às operações e sistemas que ajudam empresas a gerenciar suas redes na nova realidade onde se tem uma injeção de recursos distribuídos, que são a mini e microgeração distribuída. Na parte de medição, a maioria das empresas faz medição remota dos grandes clientes; normalmente os grandes clientes respondem por mais da metade das vendas em kWh – esses são os clientes da alta tensão. Nos clientes de baixa tensão (residências, comércios pequenos, indústrias pequenas), o Brasil está mais atrasado que outros países. Vemos, entretanto, um número crescente de empresas fazendo estudos de implantação em áreas selecionadas, algumas delas em áreas de baixa renda, onde as perdas são um problema, e para isso se usa medição centralizada; existem empresas que estão fazendo estudos de rollout em áreas específicas para dar subsídios a estudos maiores. Como exemplo, recentemente a CPFL fez um trabalho grande em Jaguariúna (SP), de onde tirou vários aprendizados em relação à logística e colheu muitos subsídios para um futuro plano em maior escala. Ainda na parte de medição a Light teve um lançamento grande, de cerca de 1,2 milhão de unidades consumidoras. A Enel está fazendo um estudo em São Paulo para recuperação de perdas e também tem outro projeto muito grande envolvendo não só medição, mas também a conversão para sistemas subterrâneos e um sistema de realidade virtual para treinamento. O sistema usará a inteligência para simulação de situações com gêmeos digitais da infraestrutura de redes. Já a Copel recentemente lançou uma grande licitação com perspectiva de 1 milhão de medidores em três, quatro anos, começando com metade disso nos próximos dois anos. As coisas estão andando, não na velocidade máxima que se imaginaria, mas elas estão acontecendo. A parte de automação e sistemas automatizados de restabelecimento é uma área que tem o maior progresso em todas empresas. Desde 2015, quando houve a renovação e a extensão por mais 30 anos de várias concessões, a Aneel subiu a régua dos índices de DEC e FEC e estabeleceu penalidades que são crescentes e planos de melhoria para um grande número de empresas. Essas empresas então estão se valendo da automação de sistemas na média tensão para poder atingir essas metas; estão instalando chaves remotas e religadores em grandes quantidade. Essa é a área que teve maior progresso no Brasil – a parte de automação da distribuição.
A PROMESSA DE MELHOR QUALIDADE DOS SERVIÇOS E DE CRIAÇÃO DE NOVOS SERVIÇOS SE CONCRETIZOU?
Cyro: Está se concretizando em segmentos. Você vê um grande número de clientes em alta tensão que estão mais rápidos que as empresas, instalando seus sistemas de sensoriamento e gerenciamento além do medidor. As empresas já têm telemedição nesses clientes, já os vigiam de perto porque eles consomem grandes quantidades de energia. As empresas estão querendo oferecer serviços de eficiência energética, retrofit e gestão de energia para esses clientes, pois eles são atrativos em volume e margem. Mas temos várias realidades no país. Temos uma área de grandes clientes, shoppings, indústrias, grandes centros comerciais que é uma área muito bem servida, que está andando, como mencionei. Ao mesmo tempo, na parte do grande público, das residências, do grande serviço visível de eletricidade, os investimentos das empresas de distribuição ainda não são suficientemente fortes para começarem a oferecer tarifas e ofertas diferenciadas, da mesma forma que a gente tem nesses outros mercados mais sofisticados. Se olharmos o setor de telecomunicações, temos as operadoras competindo por serviços e até mesmo a pessoa mais humilde é incluída, sempre encontra um plano que cabe no bolso dela. Ela procura o plano que precisa e tem opções. A modicidade tarifária nas telecomunicações é dada pelas opções que são oferecidas ao cliente. Ele não tem só uma conta que paga uma vez por mês e tem um volume fixo que nem na energia; na energia lê-se o medidor, quanto der é o que você paga. A área de telecomunicações evoluiu e tem plataformas para fazer ofertas aos clientes e existe competição. Para chegar a isso no mercado de energia precisamos dos medidores inteligentes; eles permitirão a formulação de acordos bilaterais e meios de ofertar essas energias mais aderentes ao uso. Infelizmente essa é uma infraestrutura que a gente ainda não implantou em larga escala.
QUAIS AS TENDÊNCIAS, EM TERMOS DE MERCADO?
Cyro: A energia no futuro vai ser mais ou menos igual a serviços de mobilidade urbana, como o Uber. O consumidor de alta tensão já faz isso: ele paga o fio, que é regulado, como uma tarifa por cada kWh que passa, e compra energia livremente negociada; faz pesquisa de preço, conversa com potenciais fornecedores, incorpora alguns serviços, ou não, incorpora usos sazonais e consegue ter uma conta aderente à realidade dele e dentro de um processo competitivo, e ele paga mais barato que o cliente que está vinculado à concessionária; o cliente de alta tensão, elegível ao mercado livre, já está experimentando isso. Ele tem uma aquisição de energia, uma compra em contratos bilateralmente fornecida, não precisa vir o regulador para dar modicidade para ele. É mais ou menos que nem o Uber, onde você não tem taxímetro, mas a tarifa do taxímetro é uma referência sobre a qual se arbitram descontos. É o que acontece na alta tensão e é o que vai acontecer na baixa tensão. Você vai ter a tarifa regulada como piso, e embaixo disso vão haver descontos e um mercado competindo para quem dar o maior desconto. Se for hoje no mercado livre você vai ver esse movimento. Da mesma forma, na baixa tensão, as empresas de microgeração já estão competindo para ver quem dá a maior oferta para aquele cliente sair da concessionária e contratar a microgeração com ela. Os clientes que têm acesso a assessoria qualificada já estão tendo benefício desses acordos bilaterais. E o futuro é que o mercado inteiro vai ser assim. Nós vamos comprar energia mais ou menos como se compra mobilidade: a gente entra em cada plataforma e contrata o serviço de transporte do ponto A para o ponto B por um valor que combinar com o motorista; e a energia vai ser isso; só que para ter isso é preciso criar um sistema onde seja possível medir esse uso do serviço de forma mais sofisticada, analisando não somente o volume, mas os horários, congestionamentos da rede, procura por outros usuários, etc. Em vez de dar modicidade ao cliente precisamos dar opções; dando opção ao cliente, ele vai ter a tarifa que ele consegue pagar sem ninguém ter que oferecer subsídio; e ao mesmo tempo em que se dá a opção, estaremos deixando como legado um sistema mais competitivo de uma plataforma de produtividade para o país, uma confiabilidade de energia melhor.
O ADVENTO DOS VEÍCULOS ELÉTRICOS E DA GERAÇÃO DISTRIBUÍDA VAI AO ENCONTRO DO SMART GRID, NÃO?
Cyro: Sem dúvida. Essas duas tecnologias são aquilo que a gente chama de motor da indústria de energia do século 21, que são os recursos distribuídos de energia, ou seja, você não ter só a abordagem de que a energia é uma coisa que tem que ser administrada centralizadamente por uma única empresa. Você, dentro da sua casa, pode ter um armazenamento de energia, seja da bateria do seu carro ou uma bateria estacionária; pode ter produção de energia fotovoltaica, pode integrar um pequeno gerador diesel que você tenha no seu prédio para falta de energia para suprir algum excedente numa hora de ponta e com base nisso combinar a orquestração de todos esses recursos com um sistema de alta inteligência e eventualmente vendendo as sobras para o seu vizinho. Esse é um futuro que não está longe. Parece ficção científica, mas em 2008, quando se falava de energia fotovoltaica o pessoal achava que ia demorar muito; hoje temos cerca de 4 GW instalados de mini e microgeração solar. Essa é uma tecnologia que já está aqui. Se amanhã alguém for fazer uma casa e não pensar nisso, perderá dinheiro. A casa do futuro tem que ter tomada USB em corrente contínua, geração fotovoltaica, espaço para conectar sistemas de nobreak para os computadores e eventualmente uma bateria para os usos mais críticos da casa.
ATÉ QUE PONTO A TRANSFORMAÇÃO DIGITAL DAS CONCESSIONÁRIAS CONTRIBUI PARA A EXECUÇÃO DO SMART GRID?
Cyro: Essas são coisas que estão umbilicalmente ligadas. Você não consegue tirar um benefício de um medidor inteligente se não tiver um sistema que faz a análise desses dados de forma inteligente. Quando para fazer o faturamento você precisa de uma leitura do medidor por cliente por mês é até fácil. Na hora que começa a ter medições automaticamente de 5 em 5 minutos de cada cliente, gera volume de dados, em escala, então, os sistemas corporativos têm que estar preparados. Na automação das redes isso é ainda mais crítico, da mesma forma que nos serviços de atendimento comercial via digital, que evoluíram de forma muito acentuada nesta pandemia. Os sistemas todos têm que passar por transformação digital.
A CIBERSEGURANÇA É UMA QUESTÃO IMPORTANTE NO SETOR ELÉTRICO. COM O SMART GRID O QUE MUDA NESSA ÁREA?
Cyro: Na medida em que você escala a quantidade de dados, de sensores, de conexões, de itens a serem gerenciados, a complexidade aumenta na mesma proporção, então é preciso ter sistemas mais inteligentes, e a questão da vulnerabilidade também aumenta da mesma forma, porque você tem mais pontos de acesso, mais pontos vulneráveis. Os sistemas mais críticos estão sendo construídos com conceito básico de segurança embutida. Existe uma série de diretrizes, orientações e melhores práticas para garantir a segurança desses sistemas, e o Brasil também está se capacitando nesse setor na medida em que os riscos estão aumentando… Nós tivemos recentemente um ataque grande a uma empresa de energia que paralisou sistemas por semanas. Muitas empresas estão fazendo projetos nessa área. O Cepel está desenvolvendo todo um laboratório importante para estudar a integração de renováveis e junto com isso a segurança cibernética associada. O Instituto Militar de Engenharia, junto com Itaipu, está fazendo um laboratório especialmente devotado para a questão da cybersecurity. Há uma série de iniciativas que estão se materializando nessa área. Vários centros de pesquisa no Brasil estão desenvolvendo trabalhos nessa área, tem várias expertises envolvidas e todas as transações futuras vão ser lastreadas por modelos rastreáveis tipo block chain. Vão ser plataformas de transação de energia onde vai ser possível fechar operações de crédito e de venda e compra de energia de maneira absolutamente segura. A segurança é um item fundamental nesse novo mercado.
O ENVOLVIMENTO DO CONSUMIDOR FINAL ESTÁ SENDO SATISFATÓRIO?
Cyro: Uma crítica que sempre fiz nas implementações do setor é que foram testadas muitas funcionalidades nos sistemas implementados, muita coisa em termos de tecnologia, mas poucos projetos exploraram a questão de opções de sistemas de preços e tarifas e do comportamento do consumidor. Nos outros países os projetos aproveitaram mais a questão de oferecer tarifas dinâmicas e ver como o consumidor responde ou participa ajudando as concessionárias a reduzir a demanda de pico, a melhorar o fator de carga, etc. Essa é uma área que está um tanto quanto inexplorada no Brasil, oferecer opções aos clientes para realmente promover modicidade tarifária e acesso aos serviços.
E O FUTURO DISSO TUDO? PARA ONDE ESTAMOS CAMINHANDO?
Cyro: As coisas estão acontecendo silenciosamente. A gente não se dá conta porque são pequenos progressos em várias áreas, tem muita atividade simultânea, tem muitas startups trabalhando, tem muita coisa acontecendo. São tantas frentes de tecnologia que é difícil resumir… O caminho é que essa é uma agenda inevitável. E a pior coisa que pode acontecer para o Brasil é não facilitarmos a chegada e a adoção dessas tecnologias, porque elas vão vir, com ou sem regulação. O avanço e a forma de articulação do mercado para penetração dessas tecnologias não é mais aquela forma orquestrada no passado pelos reguladores e pelas grandes empresas. Quem está viabilizando isso são pequenas empresas, que têm uma agilidade monstruosa. São pessoas que não olham essas limitações que estão na cabeça das pessoas que acham que isso é caro, que é difícil, que é impossível. Então as mudanças vão acabar acontecendo, porque as pessoas que estão trabalhando nestas novas tecnologias não se intimidam e nem acreditam nessas barreiras.